quarta-feira, outubro 18, 2006

Desmame: fatos e mitos

O texto é do Boletim Cientifico da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, maio de
2005.

Desmame: fatos e mitos
Elsa Regina Justo Giugliani*

O homem é o único mamífero em que o desmame (aqui definido como a cessação
do aleitamento materno) não é primariamente determinado por fatores
genéticos e instinto, sendo fortemente influenciado por fatores
sócioculturais.
Hoje, ao contrário do que ocorreu por pelo
menos dois milhões de anos, ao longo da evolução da espécie humana, a mulher
opta (ou não) pela amamentação e, influenciada por múltiplos fatores, decide
por quanto tempo vai (ou pode) amamentar. Muitas vezes, as preferências
culturais (não amamentação, introdução precoce de outros alimentos na dieta
da criança, amamentação de curta duração) entram em conflito com a
expectativa da espécie. Algumas conseqüências dessa divergência já puderam
ser observadas, como desnutrição e alta mortalidade infantis, sobretudo em
áreas menos desenvolvidas. Porém, as conseqüências a longo prazo ainda não
são totalmente conhecidas, já que transformações genéticas não ocorrem com a
rapidez com que podem ocorrer mudanças de hábitos. Começam a ser mostradas
evidências de que o não amamentar segundo as expectativas da espécie pode
ter repercussões negativas ao longo da vida dos indivíduos. Assim, a
não-amamentação ou amamentação sub-ótima podem favorecer o aparecimento de
doenças alérgicas, diversas doenças do sistema imunológico, alguns tipos de
cânceres, obesidade, diabete e doenças cardiovasculares, além de interferir
negativamente no desenvolvimento oro-facial. Provavelmente, com o
aparecimento de novas pesquisas nessa área, outros males serão relacionados
com os hábitos "modernos" de alimentação infantil, mas alguns aspectos
dificilmente podem ser quantificados, especialmente os relacionados com a
psique humana.

Atualmente, em especial nas sociedades ocidentais, a amamentação é vista
primordialmente como uma forma de alimentar a criança, sob o controle total
dos adultos.
Assim, perdeu-se a percepção da amamentação como um processo
mais amplo, complexo, envolvendo intimamente duas pessoas e com repercussão
na saúde física e no desenvolvimento cognitivo e emocional da criança, além
de repercussões para a saúde física e psíquica da mãe. Hoje, em muitas
culturas "modernas", a amamentação prolongada (cujo conceito varia de acordo
com a "convenção" da época e do local) freqüentemente é vista como um
distúrbio inter-relacional entre mãe e bebê.

Quadro 1 - Sinais sugestivos de que a criança está madura para o desmame mãe
e bebê.
Idade maior que um ano.
Menos interesse nas mamadas.
Aceita variedade de outros alimentos.
É segura na sua relação com a mãe.
Aceita outras formas de consolo.
Aceita não ser amamentada em certas ocasiões e locais.
Às vezes dorme sem mamar no peito.
Mostra pouca ansiedade quando encorajada a não amamentar.
Às vezes prefere brincar ou fazer outra atividade com a mãe ao invés de mamar.

Perdeu-se a noção de que o desmame não é um evento e sim um processo, que
faz parte da evolução da mulher como mãe e do desenvolvimento da criança,
assim como sentar, andar, correr, falar. Nesta lógica, assim como nenhuma
criança começa a andar antes de estar pronta, nenhuma criança deveria ser
desmamada antes de atingir a maturidade para tal.

Em harmonia com esta linha
de pensamento, Dr. William Sears, um antigo pediatra, recomendava: "Não
limite a duração da amamentação a um período pré-determinado. Siga os
sinais do bebê. A vida é uma série de desmames, do útero, do seio, de casa
para a escola, da escola para o trabalho. Quando uma criança é forçada a
entrar em um estágio antes de estar pronta, corre o risco de afetar o seu
desenvolvimento emocional". Essas palavras sábias podem ter pouco respaldo
em sociedades individualistas, que tendem a acelerar o processo de
independização do ser humano, substituindo o seio por métodos de
auto-consolo como chupetas, paninhos, mantinhas, ursinhos, etc.
Segundo diversas teorias, o período natural de amamentação para a espécie
humana seria de 2,5 a sete anos. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde recomenda aleitamento materno por dois anos ou mais, sendo exclusivo nos
primeiros seis meses. Apesar dessa recomendação, poucas mulheres no Brasil
amamentam por mais de dois anos.

As razões para a não amamentação prolongada
variam desde dificuldade em conciliar a amamentação com outras atividades,
até crença de que aleitamento materno além do primeiro ano é danoso para a
criança sob o ponto-de-vista psicológico. Uma parcela de mães, apesar de
demonstrar desejo em continuar a amamentação, sente-se pressionada a
desmamar por profissionais de saúde, seus maridos, parentes, vizinhos e
amigos.

Para a manutenção do paradigma que sustenta a afirmação de que amamentação prolongada não é natural, foi necessário criar vários mitos, tais como o de que uma criança jamais desmama por si própria, que a amamentação prolongada é um sinal de problema sexual ou necessidade materna
e não da criança e que a criança que mama fica muito dependente.


Algumas
mães, de fato, desmamam para promover a independência da criança. No
entanto, é importante lembrar que o desmame provavelmente não vai mudar a
personalidade da criança. Além disso, o desmame forçado pode gerar
insegurança na criança, o que dificulta o processo de independização.
O desmame pode ser agrupado em quatro categorias básicas: abrupto, planejado
ou gradual, parcial e natural. Sob a ótica de que o desmame é um processo
de desenvolvimento da criança, parece razoável afirmar que o ideal seria que
ele ocorresse naturalmente, na medida em que a criança vai adquirindo
competências para tal. No desmame natural a criança se auto-desmama, o que
pode ocorrer em diferentes idades, em média entre dois e quatro anos e
raramente antes de um ano. Costuma ser gradual, mas às vezes pode ser
súbito, como por exemplo em uma nova gravidez da mãe (a criança pode
estranhar o gosto do leite, que se altera, e o volume, que diminui). A mãe
também participa ativamente no processo, sugerindo passos quando a criança
estiver pronta para aceitá-los e impondo limites adequados à idade.
O Quadro 1 apresenta os sinais indicativos de que criança pode estar pronta
para iniciar o desmame. É importante que a mãe não confunda o auto-desmame
natural com a chamada "greve de amamentação" do bebê. Esta ocorre
principalmente em crianças menores de um ano, é de início súbito e inesperado, a criança parece insatisfeita e em geral é possível identificar uma causa: doença, dentição, diminuição do volume ou sabor do leite, estresse e excesso de mamadeira ou chupeta.

Essa condição usualmente não
dura mais que 2-4 dias. Algumas vantagens do desmame natural encontram-se
no Quadro 2.

O desmame abrupto é desencorajado, pois se a criança não está pronta, ela
pode se sentir rejeitada pela mãe, gerando insegurança e muitas vezes rebeldia. Na mãe, o desmame abrupto pode precipitar ingurgitamento mamário, bloqueio de ducto lactífero e mastite, além de tristeza ou depressão, por luto pela perda da amamentação ou por mudanças hormonais.
Muitas vezes a mulher se depara com a situação de querer ou ter que desmamar
antes de a criança estar pronta. Nesses casos, o profissional de saúde, em
especial o pediatra, deve respeitar o desejo da mãe e ajudá-la nesse
processo.
O Quadro 3 apresenta os fatores que facilitam o encorajamento do bebê para o
desmame.
A técnica utilizada para fazer a criança desmamar varia de acordo com a idade da mesma. Se a criança for maior, o desmame pode ser planejado com ela. Pode-se propor uma data, oferecer uma recompensa e até mesmo uma festa.
A mãe pode começar não oferecendo o seio, mas também não recusando. Pode
também encurtar as mamadas e adiá-las. Mamadas podem ser suprimidas
distraindo a criança com brincadeiras, chamando amiguinhos, entretendo a
criança com algo que lhe prenda a atenção. A participação do pai no processo, sempre que possível, é importante.

A mãe pode também evitar certas atitudes que estimulam a criança a mamar, por exemplo, não sentar na poltrona em que costuma amamentar.
Algumas vezes, o desmame forçado gera tanta ansiedade na mãe e no bebê, que
é preferível adiar um pouco mais o processo, se possível. A mãe pode,
também, optar por restringir as mamadas a certos horários e locais.

Quadro 3 - Encorajando o bebê a desmamar: facilitadores

Mãe segura de que quer (ou deve) desmamar.
Entendimento da mãe de que o processo pode ser lento e demandar energia, tanto maior quanto menos pronta estiver a criança.
Flexibilidade, pois o curso é mprevisível.
Paciência (dar tempo à criança) e compreensão.

Suporte e atenção adicionais à criança – mãe não deve se afastar neste período.
Ausência de outras mudanças ocorrendo, como, por exemplo, controle dos esfíncteres.
Sempre que possível, desmame gradual, retirando uma mamada do dia a cada 1-2
semanas.

As mulheres devem estar preparadas para as mudanças físicas e emocionais que
o desmame pode desencadear, tais como: mudança de tamanho das mamas, mudança
de peso e sentimentos diversos, tais como alívio, paz, tristeza, depressão,
culpa e arrependimento.

Já se avançou muito na valorização do aleitamento materno nos últimos
tempos. A recomendação da duração da amamentação passou de 10 meses na
década de 30 para dois anos, ou mais, nos dias de hoje. Atualmente, fala-se
em desmame natural como a forma ideal de desmame, sem especificar uma idade
mínima ou máxima para que esse processo ocorra.

Apesar desse avanço, ainda estamos longe de encararmos o desmame como um marco do desenvolvimento da criança.
Para chegarmos a este estágio, faz-se necessário entender e enfrentar as circunstâncias que, segundo Souza e Almeida, "ultrapassam a natureza e desafiam a cultura e a sociedade".

Quadro 2 - Vantagens do desmame natural

Transição tranqüila, menos estressante para a mãe e a criança.
Preenche as necessidades da criança até elas estarem maduras para o desmame.
Fortalece a relação mãe-filho.• Ajuda a mãe a ser menos ansiosa com relação
aos estágios de desenvolvimento de seu filho.